Dores sublimes: A autoflagelação e a religião

Dores sublimes: A autoflagelação e a religião

Culto da mortificação embora desencorajado pelo Vaticano, seduz figuras como o próprio João Paulo II e gente simples como os pastorinhos de Fátima. Mas o dolorismo na religião não é exclusivo da Igreja Católica.


Se João Paulo II, o papa mais mediático de sempre e alvo de uma devoção popular sem precedentes, era adepto de uma prática que a própria Igreja Católica desaconselha: a autoflagelação. "No seu roupeiro, pendurado entre as vestes, estava um cinto especial que ele utilizava para se autoflagelar", garantiu Slawomir Oder, autor do livro Porque é ele um santo? - O verdadeiro João Paulo II, apresentado no Vaticano.

A revelação pelo insuspeito redactor da obra - foi promotor da canonização de João Paulo II (JPII), falecido em 2005 - já constava do livro Santo Já, de Andrea Tornielli, biógrafo do papa e correspondente do diário Il Giornale no Vaticano. O volume citava Tobiana Sobodka, freira polaca da Ordem do Sagrado Coração de Jesus que trabalhava com JPII. "Ouvíamo-lo, no quarto em Castel Gandolfo [residência papal de Verão]. Podia ouvir-se o som dos golpes quando se flagelava. Fê-lo enquanto teve capacidade para se movimentar", afirmou Sobodka.

O frequente regresso à dor de Karol Wojtyla está longe de ser exclusivo papal - a hagiografia católica é fértil em gente que alcançou a santidade por via do martírio - mas a justificação de tal prática, vista como bizarra por ateus e agnósticos e com distanciamento pela própria Igreja Católica pós-Vaticano II, funda-se numa certa religiosidade de cariz popular que perdura, e se revela mais exuberante na Semana Santa.

Trata-se, porém, de anomalia, conhecida por dolorismo, que os alvores da Cristandade não faziam prever: "No início do Cristianismo, a procura do sofrimento era, até, considerada aberrante, porque o sofrimento não valia por si próprio", repara Teresa Toldy, teóloga docente da Universidade Fernando Pessoa. "Mas, depois, houve desvios", diz, que redundaram neste "pietismo radical".

Tais divergências ocorreram por via dupla: pela contaminação de algumas correntes filosóficas de raiz greco-helénica, por um lado, e pela imitação dos algozes de Cristo antes de ser alçado à cruz - e à categoria de divino. Num e noutro caso, é a mortificação da carne que anima os cultores do dolorismo.

 

"É um problema da corporalidade", assinala o teólogo e franciscano João Carreira das Neves. "Na mentalidade greco-latina, com o dualismo platónico (que a Cristandade ocidental adoptou), o Homem é corpo, carne, matéria - que é identificada com o Mal - e também espírito, entendido como o Bem. Ora, este deverá dominar aquela, e um dos processos seria a mortificação", diz. Toldy assinala que "semelhante ideia do ser humano e do sofrimento procurado estava, afinal, muito longe daquela que teria Jesus, fundada na antropologia semita. Mas foi a primeira que prevaleceu, principalmente com a Contra-Reforma e a apologia da salvação pelo sofrimento".

O funesto triunfo induziu muitos crentes à cópia exemplar de Cristo - os próprios pastorinhos de Fátima usaram cilício -, embora assente num equívoco fundamental. "Como Cristo morreu na cruz, após sofrer flagelações, o clero regular, principalmente esse, cultivou ao longo dos séculos essa imitação da paixão de Cristo", observa Carreira das Neves, ressalvando: "Só que as flagelações eram próprias ao castigo romano da crucificação, não resultaram da vontade de Jesus".

Indiferentes a tais contingências e à prédica dissuasora da Santa Sé, os adeptos do dolorismo resistem. Como JPII e a Opus Dei - cujos prosélitos, chamados numerários, se autoflagelam e usam diariamente um cilício. O caso mais extremo ocorre, porém, a cada Sexta-feira Santa perto de Luzón, nas Filipinas. Não obstante a veemente oposição da Igreja Católica, a localidade de San Pedro Cutud converte-se no sangrento cenário das paixões levadas ao extremo.

Centenas de homens submetem-se voluntariamente à mortificação, deixando-se flagelar em pátios e ruas até aflorar nas costas massacradas um caudal hemorrágico; depois, dezena e meia deles é crucificada, com sólidas cavilhas que atravessam mãos e pés, provocando dores atrozes que levam ao desfalecimento. E à salvação da alma, na óptica desses mártires asiáticos.

Sucede, porém, que a mortificação ocorre também noutras religiões. A invasão do Iraque celebrizou o Islão xiita e os rituais de mortificação a que se entregam os sectários no Festival da Ashura, em Kerbala. Esta festa assinala a morte do imã Hussein, neto do profeta Maomé, durante uma batalha em 680, no deserto próximo daquela cidade iraquiana, que agravaria as divisões entre os ramos sunita e xiita do Islão. Os crentes procuram reactualizar tais eventos fustigando-se com chicotes armados de lâminas nas pontas e golpeando a cabeça. Até mesmo em religiões animistas e algo exóticas ocorrem rituais de violência similar.

 

Para olhar científico de Moisés Espírito Santo, antropólogo das religiões não comprometido com nenhuma em particular nas suas apreciações, tais mortificações, sejam católicas, xiitas, animistas ou outras, "ocorrem muito em ritos iniciáticos. Trata-se da superação de uma prova de sofrimento, nem que seja simbólico, que visa estabelecer essa ligação com o sobrenatural, alcançar o sublime", diz o docente da Universidade Nova de Lisboa. "A gratificação advém da sensação de se ter atingido o objectivo, de ter superado uma prova suprema", advoga. Mais do que isso, talvez, esse sofrimento voluntário funda-se na ideia de morte. "Porque morrendo fica-se mais próximo do divino, e o sofrer é, em larga medida, um meio caminho entre a vida e a morte". Os dois grandes pólos, afinal, que balizam todas as religiões do Mundo. Com cilícios ou sem eles.

 

  1. Nome: